Paes de Barros, da SAE: "Uma política social boa é muito dinâmica.
Logo, a pior coisa que se tem a fazer é cristalizá-la"
A retomada do crescimento econômico significativo é
atualmente a melhor política para os mais pobres. Quem diz isso é o
subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Ricardo Paes de
Barros. "Somos aquele país que conseguiu resolver a solidariedade no
crescimento, mas não consegue ter um crescimento significativo", diz Paes
de Barros - ou "PB" como é mais conhecido -, que pesquisa o tema da
desigualdade desde 1979.
No universo dos mais pobres, o grupo que hoje o
preocupa é o de jovens com baixíssima escolaridade e que, a despeito dos
programas sociais, não conseguem ser incluídos no mercado de trabalho. A
dificuldade indicaria que mesmo com todas as coisas "fantásticas" que
possui, o programa Brasil sem Miséria - xodó da presidente Dilma Rousseff -
precisaria de ajustes. "Aumentamos bastante o salário mínimo e absorvemos
muita gente", diz. "Agora é preciso acabar com a pobreza
educacional."
Sem mostrar desconforto ao entrar em assuntos
espinhosos, Paes de Barros diz que há gente reclamando "corretamente"
de muitos indicadores econômicos. Duvida, porém, que há quem discorde que o
país ainda precisa de política social distributiva diante do nível de exclusão
e de "loucura social" ainda tão absurdo como o brasileiro.
Segundo ele, a discussão mais atual, que precisa ser
feita com a participação inequívoca da classe média, envolveria como continuar
fazendo a redistribuição de renda de modo sustentável e, principalmente,
transparente. Nessa seara, sobram críticas à política atual de reajuste do
salário mínimo, à cristalização de algumas políticas sociais e até mesmo ao
BNDES. "Qual o impacto que tem o BNDES sobre distribuição de renda no
Brasil?", provoca.
Considerado o responsável pelo formato atual do Bolsa
Família, Paes de Barros avalia ainda que o Brasil não precisa de mais tributos
se o governo for cuidadoso no momento de direcionar os recursos públicos.
"Outro dia eu peguei um motorista de táxi no Rio e ele tinha uma conta
fantástica em que mostrava o seguinte: a filha dele estava no fim do ensino
médio, tinha lido mais livros do que todo mundo junto da família e ia para a
universidade podendo contar com o Prouni", diz, em referência ao programa
que oferece bolsas a estudantes menos favorecidos. "Isso é redistribuição
pela prestação de serviço", conclui Paes de Barros, cujo currículo inclui
graduação em engenharia pelo ITA, mestrado em estatística pelo Instituto de
Matemática Pura e Aplicada e doutorado em economia pela Universidade de
Chicago. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: A política
econômica do governo é também responsável pela desaceleração de indicadores de
desigualdade nos últimos dois anos?
Ricardo Paes de Barros: Em
2012 e 2013, a Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio ] mostra
desaceleração bem nítida da queda da desigualdade. Não sei a causa disso, mas
uma maneira de ver o Brasil dos últimos dez anos é como se fosse uma
locomotiva. O que aconteceu nos últimos dez anos é que os grupos sociais todos
foram conectados a essa locomotiva por meio da formalização do mercado de
trabalho, geração de emprego, etc. O pobre teve um ganho fantástico porque ele
se juntou à economia. Mas se essa economia não caminha com uma velocidade
significativa, o vagão que está lá atrás não anda. Então, a melhor política
para o pobre hoje é um crescimento econômico significativo. Somos aquele país
que conseguiu resolver a solidariedade no crescimento, mas não consegue ter um
crescimento significativo. E outro problema que temos é que há um último
vagãozinho que não está conectado e aí a gente continua com muita dificuldade.
O que se vê nos últimos dois anos é que, apesar de todas as coisas fantásticas
do programa Brasil sem Miséria, não se consegue pegar esse grupo e realmente
conectar na economia brasileira. Algum ajuste vai ter que ser feito.
Valor: Que tipo de
ajuste?
Paes de Barros:
Percebe-se que especialmente os jovens ou os adultos muito jovens - o pessoal
de 25 a 45 anos que tem baixa escolaridade - não estão conseguindo trabalhar. É
preciso de algo que envolva educação formal para esse grupo. Pode ser que o
Bolsa Família e o Brasil sem Miséria não estejam conseguindo chegar nesses 5%
mais pobres. Pode ser que essa pessoa esteja se sentindo excluída da aula
porque não saiba nem ler, mas ela não te conta isso. É o vulnerável do vulnerável.
É a pobreza mais difícil de incorporar e isso não dá para fazer no atacado, mas
ver o que este pessoal precisa. O fato é que a gente aumentou o salário mínimo,
melhorou muito a renda do trabalhador com baixa qualificação que consegue
emprego e, em certa medida, demos condições mínimas para essas pessoas serem
minimamente exigentes. Então, se eu sou um adulto jovem com baixa escolaridade
não aceito qualquer salário porque tenho uma garantia mínima de renda. Por
outro lado, há algo no mercado de trabalho que não quer pagar determinado
salário para um trabalhador tão pouco qualificado. Então, esse cara deixa de
aceitar os empregos piores, mas não consegue acessar o mercado formal. E isso é
uma garantia de pobreza futura. Então, é preciso ter programa de educação muito
pesado de jovens e adultos jovens para garantir que consigam ser incorporados.
É levar o cara a completar a quinta série. Tradicionalmente, o pobre brasileiro
tinha um emprego horroroso, mas trabalhava.
"O salário mínimo é um instrumento meio tosco
para se alcançar um objetivo que todo mundo quer"
Valor: Estamos falando do
fim de um período longo de absorção das pessoas menos educadas no mercado de
trabalho?
Paes de Barros: Sim.
Aumentamos bastante o salário mínimo e absorvemos muita gente porque muitas das
pessoas com baixa escolaridade compensavam com outra coisa. Os empregos
absurdamente ruins estão cada vez mais raros. É preciso acabar com a pobreza
educacional. E não é coisa em grande escala, é bem focada.
Valor: Na Pnad de 2013, a
renda dos mais ricos voltou a crescer com mais força do que a dos mais pobres.
Demos passos para trás?
Paes de Barros:
Fora esse grupinho do último vagão, o grupo seguinte cresceu muito e continua
indo bem. O que aconteceu é que o rico que vinha crescendo 1% ao ano, na última
Pnad cresceu 4%, 5%. Há duas razões pelas quais a desigualdade pode parar de
cair: uma que não é tão ruim é o rico voltar a crescer também. A outra que é
ruim é o pobre parar de crescer. Mas o que a gente teve foi muito mais o
primeiro caso.
Valor: Em estudo recente,
pesquisadores usaram dados do IR pessoa física e apontaram que entre 2006 e
2012 a desigualdade subiu...
Paes de Barros:
Acho muito difícil argumentar que a desigualdade no Brasil não caiu porque os
diferenciais de renda por níveis educacionais despencaram nos últimos dez anos,
ano após ano, de modo muito sistemático. Em todo lugar do mundo onde isso
acontece, a desigualdade cai. No fundo é como se tivessem duas desigualdades: a
da Pnad e outra dessa correção. Se a desigualdade da correção está aumentando e
a da Pnad estabilizando, imagino que, antes, quando a da Pnad estava parada,
essa daí deveria estar subindo. Não sei. Esse tipo de trabalho é fantástico,
mas a grande vantagem da Pnad é que ela tem uma transparência enorme. Os dados
do imposto de renda são tão fundamentais que deveriam ser disponíveis para todo
mundo. Há várias coisas que não sei como eles fizeram e que podem ser
problemáticas. Por exemplo, nós podemos estar passando por um processo de maior
fiscalização. Significa que as rendas altas que as pessoas não declaravam,
agora podem ser obrigadas a declarar. Logo, se o nível de sonegação era maior e
passa a ser menor, é natural que a desigualdade suba, embora não tenha
acontecido nada. A renda do rico é que ficou mais visível. Nesse processo de
juntar os dados da Receita com a Pnad, posso imaginar 32 maneiras de fazer,
todas com problemas. Então, é preciso um monte de gente fazendo isso de várias
maneiras para dizer o que é robusto ou não.
Valor: O sr. concorda com
o francês Thomas Piketty, que recomenda uma taxação mais progressiva e global
da riqueza?
Paes de Barros:
Piketty é um gênio e o trabalho dele é intocável. Mas para o Brasil é uma
viagem a Marte. No Brasil, a desigualdade está caindo. A participação do trabalho
na renda nacional está subindo. A preocupação dele se refere a países que já
chegaram num outro nível. O Brasil tem um nível de desigualdade entre
trabalhadores, entre brancos e negros, entre homens e mulheres e entre regiões
que é tão grande, há tanta coisa para acontecer para reduzir essa desigualdade
que ainda precisaremos de um tempo para começar a sentirmos o efeito Piketty.
Mas, mesmo depois disso, acredito que é possível reduzir mais a desigualdade
pela maneira como se gasta e não como se tributa. Não precisa ter uma taxação
tão concentrada, mas se na hora de gastar eu for cuidadoso, o poder
redistributivo disso é enorme. Seria menos alarmista que o Piketty, que não
acredita tanto assim que com o gasto se consegue tornar a vida do pobre menos custosa.
Outro dia peguei um motorista de táxi no Rio e ele tinha uma conta fantástica
em que mostrava o seguinte: a filha estava no fim do ensino médio, tinha lido
mais livros do que todo mundo junto da família e estava indo para a
universidade podendo contar com o Prouni. Disse que não entendia do que se
reclamava, pois ele jamais teria essa oportunidade antes e que há 15 anos não
imaginava que poderia ter um país como esse. Isso é redistribuição pela
prestação de serviço.
Valor: Será que não seria
esse viés 'pró-pobre' justamente o que incomodaria parte da população?
Paes de Barros: Há
um cara reclamando corretamente de que há um monte de indicador econômico que
deveria ser melhorado. Além de toda a política educacional e de saúde. Há
coisas que no Brasil a gente não entende muito bem. O BNDES, por exemplo. É
difícil para um brasileiro entender o que o BNDES faz pelo país, ele fica meio
confuso. Acho que tem um conjunto de críticas do que se poderia fazer melhor.
Na verdade, acho que a polarização das eleições era mais no sentido de defender
quem conseguiria fazer melhor essa política pró-pobre. Essa é a discussão
relevante hoje no Brasil. A desigualdade ainda é ridiculamente alta depois de
tudo que a gente fez. Em 2000, o Brasil tinha 50% dos municípios com IDH
[Índice de Desenvolvimento Humano] abaixo de 0,5, que é um padrão meio africano.
Hoje, só 0,5% dos municípios tem IDH abaixo de 0,5. Há uma mudança no país
impressionante. E mesmo depois disso, o município de mais alto IDH tem o mesmo
IDH da Holanda. E o mais baixo, da Uganda. No mundo, 85% dos países estão entre
o IDH mais alto e o mais baixo registrado do Brasil. Logo, para se entender 85%
do que significa desenvolvimento humano não é preciso sair do Brasil. Isso,
depois de uma década de progresso social. O nível de desigualdade, de exclusão,
de loucura social do Brasil é tão absurdo que não tem nem como não ter uma
política social robusta e distributiva. A discussão é qual a melhor maneira de
fazer isso.
Valor: O país está no
caminho certo?
Paes de Barros:
Acho que todos esses programas deveriam ser discutidos um a um com mais transparência.
Às vezes há uma falha do governo em tornar cada um desses programas
transparentes, mas também tem falha da população que não tem paciência de
entender o programa. Fui a São Paulo em uma reunião com empresários e eles não
conheciam o programa de aquisição de alimentos, segundo o qual todas as compras
públicas de alimentos locais, que não são pequenas, têm que ser feitas do
produtor local. Isso dinamiza a produção familiar no município e tem um impacto
enorme sobre a pobreza. Esse é um país que tem que ter programas. O que não
pode acontecer é a classe média parar de discuti-los, pois o desenho e o uso
dos recursos vão perder em qualidade. Se nós vamos redistribuir recursos via
programas que serão mais focalizados entre os pobres, temos que discuti-los e
torná-los mais transparentes. Então, de novo: o que o BNDES está fazendo? Qual
o impacto que ele tem sobre distribuição de renda no Brasil?
Valor: Eu lhe devolvo a
pergunta.
Paes de Barros:
Não faço a mais vaga ideia. Confesso que não consigo nem entender direito tudo
o que eles estão fazendo. É muito intrincado. Eles são financiados pelo FAT
[Fundo de Amparo ao Trabalhador], que é um fundo dos trabalhadores. É um juro
subsidiado. Mas não adianta autoavaliação, precisamos dessas informações abertas
para todo mundo, de tal maneira que trinta teses possam olhar para aquilo e
dizer o que é. É preciso abrir a discussão. Por exemplo, pode-se ser contra ou
a favor da Petrobras ser estatal. Mas qual o impacto dela ser pública para o
pobre brasileiro? Vira uma coisa apenas de orgulho dela ser brasileira, de ser
uma das maiores empresas do mundo. É preciso uma contabilidade, que as pessoas
entendam o que se ganha em ter uma Petrobras ou um BNDES maior ou menor. A
discussão hoje no Brasil não é a redistribuição - seria loucura se a gente não
a tivesse. A questão é como fazer isso de modo inteligente e sustentável, com
menor custo, mais fácil e transparente. Essa é a verdadeira discussão. A outra
é se a gente vai fazer essa distribuição via impostos ou via gastos. E nisso o
Brasil é um dos países mais difíceis de entender no mundo. Há impostos
regressivos e progressivos, gastos altamente distributivos e outros, tipo
universidade federal pública, que são altamente regressivos.
"Como temos um banco de desenvolvimento desse
tamanho e a produtividade parada? O BNDES tem que explicar"
Valor: Qual o futuro da
agenda de redução de desigualdade no Brasil?
Paes de Barros: O
Brasil aprendeu a fazer políticas que redistribuem renda. Nisso, o presidente
Lula teve um papel histórico de tentar um monte de coisa que ninguém sabia se
ia funcionar. Umas funcionaram e outras, não. Mas ele disse que daria para
fazer uma boa distribuição de renda com bons instrumentos. O Brasil tem que
aprimorar isso. Temos uma riqueza de política social fantástica, tanto é que o
mundo inteiro quer saber o que a gente está fazendo. Fizemos muito coisa boa,
mas avaliamos e documentamos muito pouco. Parece o cara que teve grandes ideias
e não se sentou para escrever. É refinar as políticas, aumentar a escala do que
funciona, introduzir mais políticas em algumas áreas, como a juventude. Mas se
a política não andar, ou seja, se a economia não crescer...
Valor: O sr. tem ideia de
quantas políticas voltadas para a distribuição de renda temos hoje?
Paes de Barros:
Centenas. E muitas brilhantes. Agora, outra coisa que o Brasil tem que se
preocupar é que uma política social boa é muito dinâmica. Logo, a pior coisa
que se tem a fazer é cristalizá-la.
Valor: Isso significa que
um programa como o Bolsa Família precisaria ser transformado?
Paes de Barros:
Sim. Bolsa Família tem que ser transformado muito rapidamente. A França fez
isso. O abono salarial é um Bolsa Família. Dá a cada trabalhador que ganha de
um a dois salários mínimos um salário a mais que equivale a 8%, 9% da renda
dele por mês. É preciso juntar essas coisas todas e garantir que o programa não
terá efeito negativo como, por exemplo, se você está no Bolsa Família e começa
a trabalhar não perde nada com isso. Ele não pode ter efeito negativo. A
quantidade de transferência que você recebe do governo vai diminuir à medida
que seu salário aumentar. A França fez isso com o renda mínima deles.
Valor: O mercado de
trabalho foi o grande responsável pela redução da desigualdade nos últimos
anos. Como o sr. avalia a regra de reajuste do salário mínimo?
Paes de Barros:
Ninguém tem dúvida de que os trabalhadores com baixa renda deveriam ter uma
renda maior. Mas acho que subsidiar o trabalho, que é o que o abono faz, é
melhor. Eu seguraria o salário mínimo e triplicaria o abono. Com a política, eu
digo ao empregador para empregar todos os trabalhadores pouco qualificados que
precisa e eu, governo, vou coletar impostos e subsidiar esses trabalhadores
pouco qualificados. O salário mínimo é um instrumento meio tosco para se
alcançar um objetivo que todo mundo quer. O aumento do salário mínimo é um
imposto que quem paga é o cara que emprega o trabalhador de baixa qualificação.
Valor: Mas isso não
poderia ser um incentivo para que o empregador pagasse salários menores?
Paes de Barros:
Certamente. Toda vez que se cria um subsídio, não se sabe se quem está
recebendo aquele subsídio é o empregador ou o empregado. Mas, mesmo que seja o
empregador, o incentivo é para a contratação de gente com baixa qualificação. E
o piso, de qualquer maneira, é o salário mínimo. Agora, é preciso acreditar no
mercado. O empregador, se o mercado está funcionado, paga a produtividade do empregado.
Valor: O sr. estava
envolvido em um mapa de políticas públicas voltadas para a produtividade. O que
foi feito disso?
Paes de Barros: A
gente fez um grande seminário em Brasília às vésperas das eleições, então não
podíamos fazer propaganda. Estivemos com o Armando Castelar, Marcos Lisboa, até
com o Joaquim Levy. Em termos práticos, discutimos bastante a política
tecnológica. Mas acho que o mais importante no Brasil não é a inovação, é a
'copiação'. Pelo que eu saiba, o BNDES é maior do que o Banco Mundial. Logo,
como temos um BNDES desse tamanho com a produtividade parada? O BNDES tem que
explicar. Se você tem um banco de desenvolvimento desse tamanho e não consegue
aumentar a produtividade, você está fazendo o quê mesmo?
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